Roentgenizdat: os bootlegs de bandas de Rock Soviéticas gravados em chapas de Raio-X


Quando gravadora do músico excêntrico Jack White lançou o disco em chapas de Raio-X a maioria achou esse ato inovador e inusitado, mas isso não é nenhuma novidade para os "jovens da União Soviética".
O ex-White Stripes e recente artista solo Jack White fez uma parceria com o esquisito Gibby Haynes, dos Butthole Surfers, para lançar um disco de sete polegadas prensados em chapas de raio-x. Lançado no Dia dos Namorados de 2013 "The Gibby Haynes Blues Series" conta com duas faixas originais e um cover. White acompanha Haynes nos vocais e na guitarra.
Jack White é sem dúvida um dos gênios da música da atualidade e também é inovador com suas gravações da Third Man Records, que já citamos em várias matérias aqui no blog. Porém, no texto "Algumas notas sobre as origens do Rock Russo" do "Gazeta Russa", Mariana Reis explica o contexto histórico do Rock na União Soviética e traz a maneira inusitada com que os jovens difundiam e ouviam as bandas de Rock proibidas: os bootlegs gravados em chapas de Raio-X.
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O Rock and Roll surgiu nos Estados Unidos no início da década de 1950 e, em pouco tempo, se espalhou pelo mundo: no Brasil chegou em 1955 e, na Rússia, mais precisamente na antiga União Soviética, um pouco mais tarde, em 1957. Nesta época, a URSS era comandada por Nikita Krushchiov, que em seu “Discurso Secreto” no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, denunciou os crimes cometidos por Stalin (uso desmedido da violência, execuções, fraudes etc.), dando início ao processo de “desestalinização” da política soviética.
http://br.rbth.com/ Foto: Kotzendes Einhorn
Apesar da censura aos artistas se tornar um pouco mais branda neste período, os músicos ainda deveriam seguir os padrões artísticos estabelecidos pelo governo. Havia uma seleção de estilos musicais oficiais que eram permitidos de serem executados publicamente, por exemplo, a música clássica (na verdade, nem todos os compositores eram tidos como oficiais) e o jazz (que caiu na ilegalidade no período de Stálin e, após sua morte, foi gradativamente reabilitado pelo Kremlin). Quanto às letras das canções, críticas ao período de Stalin eram permitidas, mas as que eram feitas ao modo socialista de governo e sociedade não eram toleradas; a censura também valia para temas que fossem considerados nocivos à população como o alcoolismo, o sexo, a violência etc.
Valentin Parnakh e sua jazz band, em 1922: antes permitido pelo governo,
o jazz acabou se tornando ilegal na URSS com o advento de Stalin e reabilitado
apenas após sua morte, no final da década de 1950. http://br.rbth.com/


Discos com selo da Melodiia (Мелодия), gravadora da União Soviética. 
Havia uma única gravadora na União Soviética – a Melodiia (Мелодия) – que tratava-se de uma companhia pública administrada pelo Ministério da Cultura. Os estúdios de gravação também eram estatais, assim como as Casas de Cultura onde ocorriam as grandes apresentações. A seleção e distribuição de instrumentos musicais também eram por conta do governo. Desta forma, se o estilo musical e as letras das músicas fossem aprovados pelo Ministério da Cultura, o cantor ou conjunto receberia todo o apoio que precisasse para seguir a sua carreira. Caso fosse rejeitado, teria que se adequar às exigências do governo. Ou se virar sozinho.
Os músicos que quisessem se aventurar em estilos musicais não-oficiais, como era o caso do Rock (sempre acusado de contaminar a juventude com um estilo de vida “degenerado” - lembram-se do trio sexo, drogas e Rock N' Roll?), desde que não criticassem o governo e ameaçassem a ordem pública, eram tolerados e poderiam se apresentar em locais controlados pelas autoridades, como os bailes estudantis e alguns cafés, sem direito a gravar discos e a ter bons instrumentos musicais.
Timothy W. Ryback, no seu clássico estudo sobre o rock soviético Rock Around the Bloc (1990, Oxford University Press), aponta que o mês de julho de 1957 foi a data que o Rock N' Roll fez sua primeira aparição pública em território soviético, numa apresentação musical que antecedia o 6º Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, em Moscou. O Kremlin, tentando demonstrar que já havia deixado para trás a xenofobia do período do pós-guerra, convidou diversos conjuntos de jazz da Tchecoslováquia, Romênia, Polônia, Grã-Bretanha, França, Alemanha e Islândia para se apresentarem na abertura do Festival.
Alguns desses conjuntos apareceram com instrumentos inusitados na bagagem (guitarras) e algumas canções que não estavam no repertório original. Essas canções “barulhentas” (possivelmente músicas de Bill Halley & His Comets) acabaram passando batido pela censura e foram executadas no Festival por grupos da Grã-Bretanha. As reações do público foram diversas: enquanto muitos jovens se maravilharam com aquele ritmo diferente, críticos musicais se horrorizaram com tamanho primitivismo e alguns oficiais do governo ficaram desconfiados com o fascínio que aquela música exercia no público. Curiosos para saber mais sobre aquele estilo musical tão empolgante, alguns estudantes começaram a trocar informações sobre bandas e músicas.
O Roentgenizdat era praticamente a única forma de se
conhecer as bandas de rock ocidentais na década de 1950.
Fotos: Kotzendes Einhorn
Como já mencionamos, o Rock não foi incluído na lista dos estilos “oficiais” porque o Ministério da Cultura o considerava uma ameaça à juventude ao incentivar práticas como o alcoolismo, o fascismo, a violência, a perversão sexual e, principalmente, por conter mensagens contra o socialismo. Desta forma, era praticamente impossível encontrar discos, fitas e qualquer tipo de publicação sobre este gênero musical. Os fãs acabaram usando a criatividade para conseguir os discos de suas bandas favoritas.
O Poiushchie Gitary (Поющие Гитары) foi uma das
primeiras bandas soviéticas de Rock. http://br.rbth.com/ 
Já que os LP's de música ocidental eram proibidos de serem comercializados e reproduzidos, os poucos que conseguiam chegar em território soviético (oriundos de outros países que faziam parte do Bloco Soviético, como a Alemanha Oriental e a Tchecoslováquia) eram pirateados, inscrevendo-se as ranhuras dos discos em chapas de raio-X (os famosos roentgenizdat, que também eram utilizados por fãs de jazz na época em que esse estilo musical era ilegal). Mas, ao descobrir essa prática, em 1958, o governo passou a confiscar os LP's e destruiu dezenas de centros de produção e distribuição dos “discos de raio-X”. Mas a investida do governo contra a difusão do Rock acabou não dando certo.  
Alguns anos depois, em 1964, as páginas dos jornais soviéticos não poderiam deixar de noticiar a nova mania que atingiu os EUA, os quatro rapazes de Liverpool conhecidos como The Beatles. É claro que os críticos musicais “desceram a lenha” nos Beatles, acusando-os de serem garotos propaganda do estilo de vida capitalista. Mas a simples menção ao Fab Four foi o suficiente para atiçar a curiosidade das pessoas, e não demorou muito para cópias de discos do grupo aparecerem. As roupas, os cortes de cabelo, a música e tudo o mais que se referisse à banda se tornou uma febre entre os jovens soviéticos.
Foi nessa época que surgiram as primeiras bandas de Rock soviéticas. Elas tocavam, na sua grande maioria, versões cover dos Beatles em instrumentos musicais artesanais, já que não tinham acesso aos instrumentos de ponta que eram fornecidos pelo governo. Em pouco tempo, começaram a mesclar outros grupos ocidentais em seu repertório e a fazer versões Rock de canções populares soviéticas. Apesar de muitas delas se tornarem relativamente famosas entre os jovens, sem apoio e recursos técnicos adequados não havia mais para onde irem a não ser se conformarem com o underground.
O Ministério da Cultura percebeu que a tal “febre do Rock” era realmente séria. Como uma contrapartida às bandas ocidentais, o governo passou a aceitar alguns elementos musicais do Rock, com algumas restrições: foi estabelecido um termo próprio para a expressão banda de rock,Vokal'no-instrumental'nyi ansambl' (вокально-инструментальный ансамбль, conjunto vocal-instrumental ou simplesmente VIA); mais de 60% do repertório deveria ser composto por canções de origem soviética (ou seja, de compositores “oficiais”) e as letras das músicas não deveriam fazer menção aos assuntos considerados “tabus” que já explicitamos anteriormente. Em contrapartida, o governo daria todo o apoio técnico e financeiro necessário para os grupos. Muitos músicos acharam a proposta interessante e não perderam a oportunidade de se tornarem “oficiais”, cedendo em alguns pontos ao governo para, finalmente, seguirem uma carreira profissional.
Há muitos grupos VIA interessantes e eles foram os pioneiros ao levar um pouco do Rock aos locais públicos, ao rádio e à televisão. Apesar da constante vigilância ideológica, alguns eram extremamente criativos e conseguiam transformar canções oficiais insonsas em ótimas peças psicodélicas. Poderia citar diversos nomes, como o cantor russo Aleksandr Gradskii e sua banda Skomorokhi (Скоморохи), que mesclava diversos estilos como o Folk e o Rock Progressivo; o grupo Ariel (Ариэль), de Tcheliabinsk (cidade localizada próxima aos Montes Urais), também com uma pegada mais Folk e elementos de Progressivo aqui e acolá; e o Vesiolye rebiata (Весёлые ребята), que na década de 1970 contou com a participação da famosa cantora pop Alla Pugatchiova. Apesar de estes conjuntos serem muito populares e importantes, gostaria de destacar em especial outros dois nomes: Poiushchie Gitary (Поющие Гитары) e Pesniary (Песняры). 



         
O Poiushchie Gitary (o grupo dos clipes acima) foi formado em 1966 na cidade de Leningrado (atual São Petersburgo), e foi uma das primeiras bandas soviéticas de Rock a se tornar famosa. Foi uma das principais referencias dos grupos VIA e muitos acabaram imitando o seu estilo. Fortemente influenciada por The Beatles, The Shadows e The Ventures, o grupo costumava fazer versões em russo de músicas dessas bandas, adaptando as letras às exigências do Ministério da Cultura – algumas letras não precisaram ser censuradas, como foi o caso de Byl odin paren' (Был один парень), uma versão da canção C'era un ragazzo che come me amava i Beatles e i Rolling Stones, de Gianni Morandi (também imortalizada no Brasil pela banda Os Incríveis). O Poiushchie Gitary está em atividade até os dias de hoje.
Já o Pesniary (o grupo do clipe abaixo) foi formado em 1969 em Minsk, capital da atual Bielorrússia. Era um conjunto extremamente criativo e seus integrantes músicos de primeira linha. Utilizavam instrumentos tradicionais eslavos de sopro, cordas e percussão em conjunto com as guitarras e o órgão eletrônico. Essa combinação de tradição e modernidade deu à banda uma sonoridade única que muitas vezes tocava o Rock psicodélico. Além de fazerem versões de músicas ocidentais, também transformaram canções folclóricas bielorrussas em verdadeiras viagens psicodélicas. Apesar de algumas indas e vindas, o grupo ainda está em atividade.



Depois de ler essa matéria, é possível afirmar com toda a certeza que a necessidade e vontade de ouvir o bom e velho Rock N' Roll vence qualquer barreira. O amor de alguns jovens foi maior do que o medo de acabar em algum campo de trabalho forçado. Assim Elvis, Beatles, Louis Armstrong e muitos outros artistas encontraram o seu caminho para as ruas através de uma das idéias mais fascinantes da história da música: os discos gravados em chapas de Raios-X.
Roentgenizdat. Foto: Kotzendes Einhorn
Os Roentgenizdats, como ficaram conhecidos, tornaram-se muito populares entre a classe artística russa entre as décadas de 40 e 50. Baratos, eles eram vendidos como bootlegs às escondidas, através do esquema “amigo de um amigo”.
A qualidade da gravação era precária, mas boa o suficiente para valer a pena o dinheiro economizado em um dia de almoço. Relatos dizem que o som produzido era tão ou mais sombrio que as estampas de ossos fraturados no disco. Em vez dos estalos proporcionados pelos sulcos do vinil na agulha, era possível ouvir um zumbido bem estranho – porém interessantíssimo – por trás da melodia das músicas.
A origem do Roentgenizdat ainda é obscura, mas sabe-se que ele é derivado dos chamados Victory Discs, álbuns com mensagens de soldados americanos para as famílias durante a 2ª. Guerra. Em uma espécie de “serviço social”, o governo dos Estados Unidos colocou a disposição de seus homens algumas máquinas para que eles gravassem seus recados e os mandassem de volta para a América. Eram cabines automáticas munidas apenas de um microfone, que recebiam o som para que um mecanismo riscasse um disco flexível de celulóide prontinho pra ser tocado em qualquer vitrola.

Victory Disc (V-Disc) - www.ancestrypaths.com
Com o final da guerra, muitas dessas máquinas acabaram abandonadas na Europa e a tecnologia foi amplamente utilizada pela população local. Percebendo o potencial do gravador para a produção de cópias de discos estrangeiros, foi só questão de tempo para que a matéria-prima fosse substituída por uma mais barata e principalmente, menos suspeita para as autoridades.
Já não tínhamos muitas placas de celulóide disponíveis e quando as encontrávamos eram caríssimas. Daí quando os bombeiros deram a ordem para que os arquivos de radiografias fossem destruídos por serem muito inflamáveis, os hospitais colocaram a nossa disposição enormes quantidades dessas chapas.” conta Ruslan Bogoslowskij no documentário “The World at War” exibido pela BBC nos anos 70. Ele foi um dos primeiros a testar o material e foi tão bem sucedido no processo que criou sua própria gravadora independente em 1947, produzindo milhares de cópias de artistas diversos. Ficou tão famoso que foi preso 3 vezes por disseminação de conteúdo nocivo.
Em 1959, no auge de sua popularidade entre os jovens soviéticos, os roentgenizdat acabaram recebendo oficialmente o rótulo de “ilegais”. Isso significou um maior controle e um endurecimento da pena: quem fosse pego produzindo, vendendo ou comprando estava bem encrencado.




Roentgenizdat. Fotos: Kotzendes Einhorn
Era tudo muito rápido. Depois que me entregavam o disco, a impressão é que todo mundo por perto era funcionário da KGB e me veria como um suspeito. Eu caminhava com o pacote escondido em minhas roupas e pensava ‘pronto, eles sabem que eu acabei de comprar algo ilícito’.” disse Viktor Sukhorukov no mesmo documentário. Fã de jazz, ele conta que costumava fazer as transações em locais públicos e movimentados, como estações de trem e parques. “O disco era muito frágil, podia ser facilmente escondido dentro do jornal, por exemplo. Tínhamos isso ao nosso favor.” finaliza. Mas a fragilidade também era um dos pontos negativos do roentgenizdat. Aqueles que não foram confiscados e destruídos não sobreviveram para contar sua história. Os poucos que conseguiram, hoje valem fortunas e servem apenas como objeto de decoração ou peças de museu.
A febre dos “discos de ossos” acabou com a chegada dos gravadores de fita magnética nos anos 60. Porém, algumas pessoas continuaram a produzir o disco até a década de 70. O assunto promete ganhar nova visibilidade com o livro “Music on Bones”, que está sendo escrito por Eduardo Cadava, professor da Universidade de Princeton (EUA).
Para finalizar a análise, é válido afirmar que o governo pode criar as dificuldades que quiser, mas a mente humana é inventiva e extremamente fascinante e sempre vai conseguir uma solução inusitada para contornar os obstáculos. No caso dos “rebeldes do sistema” na União Soviética, criar uma maneira alternativa para ter acesso ao álbuns das bandas de Rock Soviéticas, sentindo um pouco do gostinho dos “prazeres do capitalismo”.
Os jovens soviéticos recolheram muitas placas de Raio-x nas lixeiras de hospitais e aproveitavam o plástico grosso das chapas para imprimir cópias piratas dos discos de Rock e Jazz que estavam banidos no seu país. Após impressos os veios, a chapa era cortada com tesoura e o buraco central feito com cigarro. Mesmo menores que um vinil normal (eles tinham 23-25 cm, contra 33 do bolachão), porém o mais interessante era que a música tocava, com uma qualidade muito ruim, mas tocava.
Além disso, o que é ainda mais fascinante são as imagens do Raio-X que, associadas ao contexto histórico, transformam as peças em verdadeiras obras de arte. A inspiração de White sem dúvida veio dos discos russos, o que o torna genial, porém dessa vez não tão inovador.

Confira também o documentário "Russian Rock Underground" do diretor canadense Peter Vronsky e o produtor italiano Sergio Pastrello, que fornece um breve panorama do rock e da censura na URSS no final da década de 1980.

Fontes
http://br.rbth.com
http://www.vinyloftheday.com
http://dangerousminds.net
http://www.junk-culture.com